O incidente de desconsideração da personalidade jurídica está regulado pelo Código Civil (art. 50) e pelo Código de Processo Civil (arts. 133 a 137). Em ambos os diplomas, inegável o avanço alcançado pela normatização, haja vista as inúmeras barbaridades que no passado eram cometidas na aplicação do instituto, com o afastamento da pessoa jurídica sem critérios claros, ocasionando assim uma pletora de deferimentos indiscriminados e sem a demonstração da presença dos ditames legais.
No âmbito processual, o § 1º do art. 133 do CPC é enfático ao preconizar que a pretensão de desconsideração da personalidade jurídica “observará os pressupostos previstos em lei”. O § 4º do art. 134 da Lei Processual prescreve que o pedido de instauração do incidente “deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para a desconsideração da personalidade jurídica”.
Os elementos fundamentais autorizadores tanto do requerimento quanto do deferimento da desconsideração encontram-se no direito material. O art. 50 do CC (alterado em 2019 pela Lei n. 13.874, a Lei de Liberdade Econômica), em seu caput, preceitua que a desconsideração da personalidade jurídica dar-se-á na hipótese de “abuso da personalidade jurídica”, que se caracteriza “pelo desvio de finalidade” (§ 1º) ou “pela confusão patrimonial” (§ 2º). A existência de grupo econômico, sem a comprovação dos elementos do caput, não permite o afastamento da personalidade jurídica (§ 4º) e a “mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica” não configura desvio de finalidade (§ 5º). O caput do art. 28 do CDC, por sua vez, autoriza o magistrado a desconsiderar a pessoa jurídica “quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social” e “falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica ou por má administração”. Diferentemente do CC, os §§ 2º a 4º desse dispositivo determinam que as empresas de um grupo societário e as sociedades controladas são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações contidas no diploma consumerista (§ 2º); as sociedades consorciadas, responsáveis por solidariedade (§ 3º); para a responsabilização das sociedades coligadas, por sua vez, a comprovação da culpa é essencial (§ 4º).
Destaque especial merece o § 5º do art. 28 do CDC: “Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”. A abertura da norma é preocupante, pois permite uma incomensurável liberdade interpretativa, que, em alguns casos, refletem grandes injustiças. Por exemplo, se a empresa não dispuser de patrimônio para o cumprimento da obrigação, seja lá por que motivo, configura “obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”?
Impende frisar que esse incidente é uma medida excepcional, pois o desfazimento da separação entre os patrimônios das pessoas jurídica e natural – sócios ou administradores – configura a quebra de um pressuposto de segurança jurídica para os empresários (princípio da autonomia patrimonial), advindo daí a normatização minudente do instituto. Todavia, apesar da clareza da legislação, é possível encontrar decisões judiciais que afastam a personalidade jurídica da empresa sem respeito aos ditames legais, espelhando assim o uso da desconsideração como um mecanismo de opressão contra os empresários. Daniela Poli Vlavianos, do site Conjur, comenta que a banalização dessa figura “é um reflexo de um sistema que, por vezes, parece preferir a conveniência à legalidade”, dado que afetar o patrimônio dos sócios, “os magistrados buscam uma solução rápida para as execuções frustradas, ignorando que tal decisão pode gerar graves injustiças” .
Disponível em:
www.conjur.com.br/2025-fev-02/desconsideracao-da-personalidade-juridica-banalizacao-de-um-instrumento-juridico/
acesso em 02 de fevereiro de 2025.